sábado, 8 de abril de 2017

A Normalidade

No livro "As Origens do Totalitarismo", Anna Harendt defende que o totalitarismo impõe-se sobretudo por que faz um uso descarado do mal (a perseguição dos oponentes na URSS ou dos judeus na Alemanha Nazi), até ao momento que tal acaba por ser aceite pelos cidadãos comuns como sendo algo normal - é a banalização do mal.
Temos carradas de exemplos sobre o que é que na prática significa a banalização do mal. Ainda há dias um camião correu desenfreado numa rua pedonal de Estocolmo, ceifando várias vidas na até então segura e pacata Suécia. Já ninguém usa a hashtag #prayfor ou filtra a fotografia de perfil do Facebook com a bandeira da Suécia. Os mídia passaram a tratar estes atentados já não de uma forma chocante e, ao mesmo tempo, mobilizadora da opinião pública, optando antes por um registo mais suave, quase como difundem um atentado que mata 200 pessoas no Iraque, mesmo que este tipo de atentados em solo europeu fosse algo impensável há dois anos. No final de contas tudo não passa de uma questão de percepção. A forma como encaramos de hoje em dia a normalidade é também ela ditada pela forma como percepcionamos a realidade. Ou, como essa percepção nos é provocada.
Vejamos um exemplo: em Outubro de 2015, Bruno de Carvalho denunciou um esquema ilegal de prémios que o benfica entregava aos árbitros que lhe apitavam os jogos. Inicialmente o esquema foi desacreditado porque, diziam os comentadores, era tudo mentira. Ninguém recebia voucher nenhum. Passados uns dias, assim que se começaram as saber algumas histórias de árbitros que costumavam jantar no Museu da Cerveja, a narrativa passou a ser que o valor gasto nas refeições ficava abaixo do que a UEFA considerava como limite aceitável para uma oferta. Como esse limite era algo elevado, face à realidade económica portuguesa e ao que os árbitros ganham por jogo, banalizou-se o assunto voucher: afinal era uma coisa normal, ninguém se deixa corromper por uma refeição e todos ofereciam alguma coisa aos árbitros. Entretanto a justiça desportiva portuguesa não condenou o clube acusado, pelo que de hoje em dia é normal um árbitro receber um voucher para uma refeição que pode ir até aos 200 euros...
A cartilha do Estado Lampiânico está em fase de normalização. Os noticiários do dia ainda falaram sobre o assunto, contudo os spin-doctors do costume já começam o seu trabalho para modelar a realidade que percepcionaremos. A narrativa hoje é que a cartilha afinal é reveladora da estrutura afinada do benfica (Ribeiro Cristóvão), da adaptação da estrutura a uma época onde a informação é tudo (Rui Gomes da Silva), sendo que o facto desta ser pública, ao contrário da cartilha dos seus rivais, apenas comprova a benevolência dos seus fins (esta é a incrível conclusão deste artigo na Tribuna do Expresso).
Nos próximos dias continuarão a vender-nos que tudo isto é normal. É normal comentadores independentes falarem um discurso alinhado por uma pessoa isenta; É normal esta pessoa isenta fazer estes briefings sem ser assalariada do clube que defende; É normal um clube profissional utilizar este canal para atacar os seus adversários, escudando-se assim nos seus papagaios de serviço sem o risco de incorrer em infracções disciplinares; E outras normalidades que tais. E de normalidade em normalidade, tudo isto será banal, de tão normal que é (esperem até chegar o dia em que se descobrir que a cartilha também é entregue a jornalistas "isentos").
Bem, e que logo à noite ganhemos por 3 ou 4 ao Boavista... como é normal!

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